Fonte: Revista Cult
Por: Christian Ingo Lenz Dunker
A psicopatologia lacaniana articulou sua
teoria das estruturas clínicas como uma deriva do método estrutural, proposto
inicialmente por Lévi‑Strauss na antropologia, combinando‑as com as
considerações de Hegel sobre a filosofia da história. As antes chamadas
“doenças mentais” não são nem doenças e nem mentais porque são estruturas
análogas aos mitos individuais, dotadas de dimensões existenciais: Real,
Simbólico e Imaginário. Para definir a neurose, a psicose ou a perversão como
estruturas existenciais, Lacan entendeu que estas eram formas de interpretar a
única lei universal não natural, ou seja, a proibição do incesto. Freud
havia proposto, em Totem e tabu (1914), que o desejo humano
repetia, no complexo de Édipo, os mesmos impasses que originaram a passagem do
estado de natureza para o de cultura: assassinato do pai no estado de horda
primeira, incorporação canibalista de seu corpo, eleição de um totem para
representá‑lo, transposição da proibição de ataque ao totem como tabu,
aplicação do tabu à regra que proíbe o incesto em todas as culturas conhecidas.
Nos anos
1940 Kroeber e Malinowsky teceram críticas ao suposto universalismo do complexo
de Édipo, assinalando a existência de culturas nas quais o incesto não é
proibido, pelo menos em alguns aspectos, uma vez que os conceitos de família
nessas culturas são muito diferentes dos nossos. Freud apoiara‑se em dados e
ilações propostos por Darwin e Smith que se mostravam equivocados à luz da
antropologia da época. Não é que a hipótese freudiana estivesse equivocada em
todos os seus aspectos, mas ela simplesmente não é universal.
Na década de
1950, quando Lévi‑Strauss reabilitou o totemismo conferindo‑lhe uma nova
interpretação, ele percebeu que o importante na lei do incesto não era o
sistema de parentesco específico no qual ele era praticado, mas a existência
mesma de uma regra universal de parentesco, que regrava os casamentos em geral,
levando em conta como as pessoas eram nomeadas dentro e fora de sua linhagem.
Foi essa reformulação que levou Lacan, nos anos 1960, a falar em função paterna
e função materna, tornando‑as relativamente independentes do personagem real
que as pratica. Por exemplo, a função materna pode ser exercida por um homem, e
a função paterna pode ser exercida por um transgênero. Em uma direção
semelhante, Lacan interessou‑se pelas variantes do mito de Édipo, mais
precisamente a versão levada a cabo por Sófocles em Antígona. Temos
aqui outro conjunto de impasses e de relações com a lei, que dessa vez
tematizam mais diretamente a lei da cidade contra a lei da família. Temos aqui
um Édipo protagonizado por uma mulher.
A
psicanálise, ao longo de sua história, pensou criticamente oposições que lhe
eram constituintes: sonho e razão, loucura e normalidade, infância e
adultescência, primitivos e civilizados, pré‑genitais e genitais. Mas, ao que
tudo indica, ainda remanesce a oposição neurose e psicose como ponto no qual a
“desmontagem do centro” não se processou inteiramente. Por desmontagem do
centro entendo a estratégia epistemológica, tão característica da psicanálise
que consiste em criticar a falsa centralidade do homem, que não é nem o centro
do cosmos, nem das espécies e nem centro de si mesmo. Mas criticar a
centralidade não é prescindir dela, e isso só pode ser feito por uma mudança
mesma do conceito de perspectiva.
As novas
críticas, recebidas pela psicanálise a partir dos anos 1970, detiveram‑se em
sua incorporação estruturalista. A objeção do falocentrismo (Derrida), o
androcentrismo (Teoria Feminista), o logocentrismo (Nietzscheanos), o
etnocentrismo (Teoria Pós‑Colonial) e finalmente o edipianismo (Deleuze e
Guattari), convergem para esta espécie de primazia conferida à estrutura
neurótica. Tudo funciona como se o Édipo explicasse a neurose, e a neurose, a
psicose. Como modelo e meta da condição de sujeito, a neurose adquire
frequentemente valor de paradigma normalopático para processos de simbolização,
de articulação de desejo e de laço social com o outro.
Para
incorporar e responder essas críticas e renovar a psicopatologia psicanalítica
seria preciso reler Totem e tabu. Ao enfatizar a distinção
básica entre cultura e natureza, do qual o tabu do incesto fornece a gramática,
a psicanálise abandonou o campo da natureza. Esse abandono cria uma falsa
oposição com a psiquiatria biológica, como se houvesse de um lado uma
psicopatologia da mente e outra do cérebro. A psicanálise jamais advogou esta
partilha, mas se viu obrigada a engoli‑la como contrapeso da adoção do método
estrutural. A leitura convencional do totemismo traz consigo a tese de que
existe apenas uma natureza. Ela é fixa para todas as culturas, que são assim
pensadas como variações de interpretação do mesmo substrato natural, contendo
atribuições arbitrárias de sistemas de valor, de língua, de religião etc.
O ponto
problemático em aderir a um relativismo‑mononaturalista, é nos vermos
obrigados a defender uma psicopatologia multiculturalista, que não
é, em absoluto, uma posição necessária ou decorrente das teses lacanianas. Não
há nenhum motivo para que a psicanálise defenda a unidade do campo natural, ao
modo da res‑extensa cartesiana. Ela não precisa aderir à tese
de que há um ponto de vista, um “metaponto de vista”, que argumenta que a
ontologia é fixa e a epistemologia é variável. Quando Lacan postula que o Real
é isso que é negado para que a realidade se apresente como uma, plausível e
idêntica a si mesma, ele recusa a fixação da ontologia. Quando ele pleiteia que
a relação entre os seres humanos envolve uma espécie de não relação entre o
gozo masculino e o gozo feminino, ele está assumindo um tipo de perspectivismo
onde a única constante são as perspectivas (homens, mulheres), e o gozo ou o
Real a elas associados são depreendidos dessas perspectivas que, somadas, não
formam nem uma unidade, nem uma identidade, mas uma “não relação”.
Até
recentemente essas teses de Lacan careciam de uma sustentação antropológica,
correndo grave risco de se apresentarem apenas como uma conjectura metafísica,
ainda que útil para os clínicos. Isso começou a mudar nos anos 1990 quando o
antropólogo brasileiro Eduardo Viveiros de Castro, discípulo e continuador de
Lévi‑Strauss, estabeleceu uma crítica interna do totemismo, que ele veio a
chamar de perspectivismo ameríndio. Trabalhando com populações do
alto Xingu, ele notou a presença de um sistema de pensamento para o qual o
totemismo, e seus subsistemas de sacrifício e aliança, viam‑se suspensos. Em
regra, são povos para os quais a diferença entre “nós” e “eles” dá‑se de forma
não substancial e definitiva. No encontro com o Outro não emerge a reação
narcísico egoica de afirmação de si, mas um jogo de determinação mútua da
determinação de si pelas perspectivas criadas no encontro. Isso implicaria a
primazia de um sistema não identitarista de relação com o Outro. Por isso seu canibalismo
difere do que foi pressuposto por Freud (e posteriormente empregado pelos
modernistas brasileiros), pois não se trata de acumular predicados ou traços do
outro que foi devorado, mas de dissolver e indeterminar a natureza do próprio
eu. Se são as perspectivas que prescrevem os mundos, todos eles existentes,
surge como decorrência do perspectivismo a diversidade de naturezas, ou seja,
o multinaturalismo: ‘Perspectivismo’ foi um rótulo que tomei
emprestado ao vocabulário filosófico moderno para qualificar um aspecto muito
característico de várias, senão todas, as cosmologias ameríndias. Trata‑se da
noção de que, em primeiro lugar, o mundo é povoado de muitas espécies de seres
(além dos humanos propriamente ditos) dotados de consciência e de cultura e, em
segundo lugar, de que cada uma dessas espécies vê a si mesma e às demais
espécies de modo bastante singular: cada uma se vê como humana, vendo todas as
demais como não‑humanas, isto é, como espécies de animais ou de espíritos”
(Viveiro de Castro, A inconstância da alma selvagem. São Paulo:
Cosac Naify, 2001).
O
perspectivismo dos Arawetés afirma que o fundo comum entre seres humanos e
animais é a humanidade, e não a animalidade. No universo totêmico funções
dêiticas tal como “ontem” ou “amanhã” são tão logicamente válidas quanto
relações de parentesco como “filho de”, “sobrinho de” etc. e tão naturais como
um pedaço de peixe ou uma canoa. Esse contexto trivial define a “normalidade
administrada” como aptidão reflexiva: os seres humanos veem os humanos
como humanos e os animais como animais. “Animais” é a função lógica do
argumento na qual podemos substituir toda forma de vida que não partilhe esta
lei totêmica. Historicamente, são os excluídos: loucos, bárbaros, estrangeiros,
marginais, doentes, selvagens, crianças e assim por diante. É neste ponto que o
animismo levanta uma resposta alternativa. Não existem apenas humanos e animais,
há também formas de vida que, como “espíritos”, “pedaços de corpos”, “zumbis” e
“homens feitos às pressas”, podem ser, por exemplo, “não‑todo‑humanos” ou
“não‑mais‑animais”. Onde o totemismo reconhece uma oposição do tipo
homem/animal, o animismo percebe um número indeterminado de formas de vida,
todas elas “humanas”, vestidas com as mais diversas “roupas” não humanas. O
perspectivismo ameríndio é um perspectivismo somático, no qual o
corpo é entendido como roupa, envoltório ou semblante que deve ser
continuamente produzido ou fabricado. A roupa é concebida como produção de um
corpo, está mais para um equipamento de mergulho que instrumentaliza ações, do
que para a máscara de carnaval, que esconde uma identidade essencial. Encontrar‑se
com tais formas de vida “desnudas” é um signo seguro de que as
condições não são normais, ou seja, de que a perspectiva não
é normal, mas nunca de que o Outro não é normal.
Podemos
pensar, de modo homólogo, que a oposição entre psicose e neurose, a mais forte
oposição estrutural da psicopatologia psicanalítica, é uma oposição semelhante
à que estamos detalhando entre totemismo e animismo. De fato, do ponto de vista
do totemismo, que privilegia a metáfora como princípio de ordem e classe, o
animismo representa um déficit e pode ser percebido como uma ausência de certas
determinações. Mas do ponto de vista dos povos animistas, que privilegiam a
metonímia, mas em uma relação subversiva entre ordem e classe, são os povos
totemistas que sofrem com excesso de experiências de determinação e que não
conseguem perceber a existência e a importância produtiva das experiências de
indeterminação. Enquanto os totemistas lidam com a diferença, representada pelo
patológico, criando uma multiplicidade de culturas, os animistas‑perspectivistas
admitem que só há uma cultura, e são as natureza individuais que variam.
Portanto, a
ultrapassagem do neurótico‑centrismo não se faz, necessariamente, pela
admissão do caráter universal da psicose humana, como pretende a chamada teoria
da foraclusão generalizada, mas pode ocorrer pelas vias da recuperação da
categoria de loucura, como patologia do reconhecimento e do sofrimento social.
Também a inversão do androcentrismo não precisa corresponder à sua substituição
pelo simples oposto, o feminismo generalizado, derivado da noção de gozo
feminino. Não se trata de uma multiplicação de Nomes‑do‑Pai, mas de uma
oscilação entre a função de nomeação e a produção de identidades. O que nos
parece essencial admitir é a existência de experiências produtivas de
indeterminação, equivalente conceitual da não proporcionalidade entre
gêneros, modalidades de gozo e estruturas clínicas.
Fonte:
http://revistacult.uol.com.br/home/2015/12/perspectivismo-e-psicanalise/
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