Boa tarde a todas e todos,
O Movimento Psicanalítico do ABC agradece a presença de todas (os) na Jornada de Abertura das atividades de 2019, realizada neste último sábado, 9/03.
Agradecemos a contribuição, realizada pela manhã, quanto a relação entre filosofia e psicanálise, apresentadas pelos nossos integrantes Aline Taconeli, Isaias Ferreira e Brendali Dias - abrindo caminho para o curso que iniciará em 16 de março “Curso de Introdução ao ensino de Lacan: da filosofia à psicanálise”.
Agradecemos também Fabio Franco, psicanalista membro do FCL-SP, a que tivemos o prazer em receber na mesa da tarde e que nos trouxe consistente e valiosa análise intitulada “O abjeto e suas vicissitudes: política e melancolia”.
O psicanalista Isaías Ferreira, integrante do Movimento Psicanalítico do ABC, realiza um texto apresentando uma importante releitura e mapeamento das contribuições feitas por Fábio Franco. O debate proposto nos auxilia a pensar nosso momento histórico e as condições da(s) política(s) de extermínio e da melancolia. Segue o texto:
“Segundo dados inéditos reunidos e analisados pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), em média aproximadamente 190 pessoas desapareceram por dia no país, entre 2007 e 2016, totalizando 694.007 registros de desaparecimento em delegacias de polícia das 27 unidades da federação nos últimos 10 anos. Nesse mesmo período, apenas no Estado de São Paulo, foram registrados, de acordo com pesquisa, 242.568 casos de desaparecimento. Além disso, na pesquisa de opinião realizada pelo FBSP/Datafolha, 23.8 milhões de brasileiros reportaram possuir algum conhecido, amigo ou familiar desaparecido” (Franco, 2018, p.16).
Quando pensamos no atual cenário político em que vivemos, não só no Brasil, mas no mundo inteiro notamos uma espécie de melancolização no campo da experiência política. Diante disso há um esforço propositivo para entender os fenômenos que engendraram essa jaula de aço em que estamos envolvidos.
Neste sentido, Fábio Franco estabeleceu reflexões precisas sobre uma determinada política de extermínio, que se apresenta como uma verdadeira política da morte. O percurso de sua fala baseou-se em um repertório crítico embasado nos desenvolvimentos teóricos de Foucault, Agamben, Mbembe, Freud, Lacan, Butler, Esposito, entre outros. Sua proposta, com efeito, consistiu em apontar a insuficiência das análises da biopolítica na interpretação de fenômenos de extermínio em regiões periféricas do globo terrestre. Nesse itinerário, o nome de Achille Mbembe aparece como uma fonte incontornável para analisar esses fenômenos que acabam sendo relegados a uma vala comum na interpretação eurocêntrica Ocidental. Tendo em vista que o sociólogo camaronês (Mbembe) recupera os conceitos foucaultianos de biopolítica e tanatopolítica, amplamente retrabalhados por Agamben, para definir o que chamou de necropolítica, considerada uma forma de constituir e gerenciar não só a vida, mas também de fazer uma política do extermínio, produzindo, assim, a manutenção da violência e das desigualdades sociais nas regiões periféricas do mundo.
Dessa forma, Fábio Franco elabora uma análise crítica, amparada pelo método paradigmático proposto por Agamben em sua anatomia da obra foucaultiana. Longe de tentar reconduzir ao problema de uma origem histórica, o método paradigmático tem por objetivo “tornar inteligível uma série de fenômenos, cujo parentesco havia escapado ou podia escapar do olhar do historiador (AGAMBEN, 2009, p. 35).
Vale mencionar que os avatares que constituem o quadro de paradigmas elencados por Foucault (panóptico, governamentalidade etc.) e por Agamben (“homo sacer” e o campo de concentração, o “muçulmano” e o estado de exceção etc.) nunca buscaram o mero levantamento de hipóteses pelas quais se pretendia explicar a modernidade. Pelo contrário, o papel dos paradigmas, nesse método, não apenas torna inteligíveis certos fenômenos, mas também os constituem, tendo em vista um contexto histórico-problemático bem mais amplo (FRANCO, 2018).
Nesta esteira de argumentação, Fábio Franco se propõe a fazer algo pouco convencional em um departamento de filosofia: realizar um estudo de caso. Em suas palavras:
“Considerando tudo isso, gostaria neste trabalho de sustentar que o caso da vala clandestina de Perus pode ser tomado como um paradigma, isto é, como um modelo de inteligibilidade da economia contemporânea de poder. Isso porque ele é um fenômeno histórico singular, ocorrendo em espaço e tempo determinados, e, simultaneamente, funciona como condição de criação e de inteligibilidade de um certo campo de problemas relativos ao poder na contemporaneidade, sobretudo às relações entre o poder e a morte. Em outras palavras, os dispositivos desaparecedores, aos quais pertence a vala de Perus, podem lançar luz sobre aspectos ainda não tematizados do funcionamento do necropoder” (FRANCO, 2018, p. 10-11).
Fábio Franco ainda recupera nas elaborações de Foucault o deslocamento decisivo da “crítica do poder dos aparelhos do Estado, das formas nas quais o poder se institucionaliza e como que se substancializa, para capturá-lo no seu exercício efetivo, no seu funcionamento prático, por meio de dispositivos variados” (FRANCO, 2018, p. 17). Neste sentido, o desaparecimento é tomado “como um dispositivo de poder cujas ramificações e trânsitos é preciso acompanhar na prática, percorrendo as diversas instituições que o compõem, os jogos de força em que se inscreve, os efeitos subjetivos que induz” (FRANCO, 2018, p. 17).
Assim, nesse expediente que considera determinados fenômenos históricos à luz do método paradigmático, Fábio Franco posiciona essa tese agambeniana para tentar “tornar inteligível as formas necropolíticas do poder em várias partes do globo, nas quais esse toma como sua tarefa a gestão da morte e do sofrimento populacionais” (FRANCO, 2018, p. 17). Toda essa discussão está no horizonte, ainda que nosso convidado tenha estabelecido o recorte de uma situação bem localizada na realidade brasileira: os restos mortais encontrados na vala comum de Perus.
Não obstante, também pretendeu sustentar ao longo da tese que as análises foucaultiana e agambeniana “sobre a biopolítica no Ocidente precisam ser corrigidas e complementadas em muitos pontos a partir do confronto entre tais teorias e as questões que emergem do funcionamento da necropolítica nas áreas periféricas do planeta” (FRANCO, 2018, p. 17). Já que diante do fenômeno da necropolítica, os modelos interpretativos oriundos dessa matriz biopolítica sustentada por Foucault mostraram-se insuficientes.
Durante sua fala Fábio Franco apresentou de maneira consistente que a construção teórica de Foucault sobre a biopolítica reflete uma articulação sobre filosofia, política e teoria crítica. Dessa forma, quando o filosofo francês elabora a fórmula presente no antigo regime de “fazer viver, deixar morrer”, a morte aparece como uma cerimônia para sustentar o poder do monarca. Na política moderna, pelo contrário, ocorre uma reinterpretação dessa fórmula: “fazer viver e não deixar morrer”. Para Foucault, portanto, o que acontece na modernidade é uma gestão da vida. Nesse sentido, na política moderna há um declínio do deixar morrer, em virtude de uma gestão da vida, tendo em vista que o poder deixa a morte de lado. Isto é, a morte não interessa mais ao poder, pois, é a gestão da vida que passa a ser representada em suas formas institucionalizadas. Com isso, a biopolítica cria dispositivos e estabelece uma racionalidade para administrar nações e corpos.
Mesmo que Agamben tenha aprofundado “o problema da relação entre bio e tanatopolítica, ultrapassando a convicção foucaultiana de que, a partir do século XVIII, a morte deixou de interessar ao poder, recuando para os recônditos da vida privada. A pesquisa do Homo Sacer insistirá, ao contrário, que biopolítica e tanatopolítica se envolvem moebianamente. Isto é, o fazer morrer não é um excesso ou uma tecnologia soberana excepcional na era da biopolítica, mas seu anverso necessário, na medida em que, para Agamben, a decisão sobre a vida é indissociável da decisão sobre a morte” (FRANCO, 2018, p. 4). Aqui aparece um desdobramento da conhecida fórmula foucaultiana do “fazer viver/deixar morrer”.
De um outro ponto de vista, Achille Mbembe, no bojo “das críticas pós-coloniais e descoloniais a Foucault e a Agamben, deslocou o centro de gravidade das teorias biopolíticas da Europa para as regiões do planeta ainda submetidas aos efeitos da colonização. Ao operar dessa maneira, Mbembe explicitou os limites explicativos da concepção foucaultiana de biopolítica, que não dedicou suficiente atenção para o fato de que, naqueles locais, permanece em funcionamento um poder voltado para a gestão do sofrimento social e da morte das populações com o objetivo de subjugá-las mais e mais. Menos um poder de fazer viver, de maximizar as forças e as potências vitais, do que um poder de produzir a morte como seu principal objetivo” (FRANCO, 2018, p. 5).
Portanto, a necropolítica, como um limite da biopolítica, representa uma forma sistemática de extermínio de populações periféricas, funcionando como uma espécie de economia da violência. Esse modus operandi produz diversos sofrimentos subjetivos, diante dos quais populações inteiras desenvolveram uma forma-de-vida pautada na sobrevivência.
Considera-se, desse modo, que os chamados efeitos subjetivos causados pela necropolítica possuem um certo tensionamento. Por um lado, formas-de-vida administradas pelos dispositivos de violência para manter as desigualdades sociais. Por outro, a expressão de um paradoxo, isto é, quando consideramos seus efeitos como processos subjetivos. Na verdade, essa subjetivação espelha uma dessubjetivação (abjeção), assim como uma melancolização da experiência. Os sujeitos são convertidos em uma forma-de-vida nua pelo poder soberano em sua nova roupagem biopolítica, ou para retomar o termo de Mbembe de uma necropolítica. Assim, os sujeitos são desprovidos dos dispositivos que garantiriam a expressibilidade dos direitos humanos, como se fossem reduzidos a condição de animalidade.
Fábio Franco, baseado nos desenvolvimentos foucaultianos da década de 1970 sobre a governamentalidade e nos trabalhos de Mbembe sobre a necropolítica, arrisca propor um conceito norteador de sua tese: a necrogovernamentalidade. Dito de outro modo, identifica que os efeitos necropolíticos produzem tanto um corpo desconhecido, quanto uma desrealização da morte.
Nesta esteira, ainda aponta que a consequência dessa produção industrializada de sofrimento físico e subjetivo produziu o que Butler denominou “melancolia generalizada”. Os sujeitos são proibidos de fazerem uma elaboração adequada do luto (desrealização do luto), o que produz uma condição melancólica em larga escala. Com efeito, a melancolia generalizada é uma das faces da necrogovernamentalidade no capitalismo.
A propósito da melancolia generalizada, Butler se refere a uma desrealização do luto, como uma espécie de violência da consciência. Isto é, a produção de um corpo desconhecido e de um luto prescrito. Na medida em que privar alguém do processo de simbolização/subjetivação diz de um efeito de dessubjetivação (abjeção). Aqui a melancolia generalizada é um paradigma da necrogovernamentalidade.
Fábio Franco conclui sua fala, apresentando tanto a leitura de Judith Butler, quanto a de Lacan sobre o texto “Luto e melancolia” de Freud.
A interpretação de Butler desse texto freudiano implicou uma espécie de método arqueológico, no qual localiza aspectos não revelados por Freud no que diz respeito ao social e a política. Como se ela encontrasse elementos que foram inseridos no texto à revelia do próprio Freud. Esse diagnóstico que Butler empreende da “melancolia generalizada” foi deduzido desse texto freudiano, considerando os efeitos do luto e da melancolia nos processos de subjetivação. Nesse momento Fábio Franco apresenta com todo o rigor necessário, que não se trata da transposição de uma categoria clínica pertencente ao campo das psicoses para uma categoria social pertencente, nesse caso, ao campo político.
Lacan, por sua vez, em seminário 10 (A angústia) empreende uma análise desse texto freudiano por intermédio de seus famosos esquemas, assim como recorrendo a sua álgebra teórico-clínica.
Com efeito, Lacan a partir dos textos “Luto e melancolia” e “Inibição, sintoma e angústia” defende que a função do luto revela uma estrutura fundamental da constituição do desejo. E isto tendo em vista que Freud se interroga como “as relações da angústia com a perda do objeto pode distinguir-se do luto” (Lacan, 1962-63, p. 362).
Para Lacan, Hamlet torna-se um caso paradigmático para compreender a função do luto, sendo que, a ausência de luto em Gertrudes (sua mãe), diante da morte do marido, fez com que ocorresse uma espécie de desvanecimento radical com relação ao campo do desejo. “O desejo falta porque o ideal desmoronou” (Lacan, 1962-63, p. 363). Isto é, quando se contradiz o ideal, quando ele desmorona o resultado é que o poder do desejo desaparece em Hamlet. A potência do desejo só teria seu lugar restabelecido a partir do que Lacan chama de “um luto de verdade”, já que, sua senda estava marcada pela competição com Laertes, que pranteando a morte de Ofélia, evidencia que Hamlet estava separado de seu objeto amado (Ofélia) por conta da carência do seu desejo.
Se por um lado, Freud “observa que o sujeito lida com uma tarefa que consistiria em consumar pela segunda vez a perda do objeto amado, provocada pelo acidente do destino (Lacan, 1962-63, p. 363)”, no qual insiste no aspecto da “rememoração de tudo o que foi vivido da ligação com o objeto amado” (Lacan, 1962-63, p. 363).
Por outro lado, Lacan entende que o trabalho do luto articula-se “por um prisma simultaneamente idêntico e contrário, um trabalho feito para manter e sustentar esses vínculos de detalhes (...) a fim de restabelecer a ligação com o verdadeiro objeto da relação, o objeto mascarado, o objeto a, para o qual, posteriormente, será possível dar um substituto, que afinal não terá mais importância do que aquele que ocupou inicialmente seu lugar” (Lacan, 1962-63, p. 363).
Todavia, Lacan faz um apontamento decisivo para compreender a distinção entre a função do luto e a condição melancólica. O problema do luto refere-se “a manutenção, no nível escópico, das ligações pelas quais, o desejo se prende não ao objeto a, mas à i(a), pela qual todo amor é narcisicamente estruturado” (Lacan, 1962-63, p. 364), o que implica a chamada dimensão idealizada. É, portanto, na distinção entre o objeto a e i(a) que se torna possível conceber a diferença entre o luto e a melancolia.
Sabe-se, e o próprio Lacan aponta, que Freud abre uma via de interpretação “pela ideia de reversão da libido pretensamente objetal para o próprio eu do sujeito” (Lacan, 1962-63, p. 364). Já na melancolia esse processo não ocorre muito bem, “porque o objeto supera sua direção. É o objeto que triunfa”, caracterizando uma estruturação diferente do mecanismo de retorno da libido presente no luto.
Para Freud é preciso que o sujeito se entenda com o objeto. Mas por se tratar de um objeto a que nesse processo se encontra “mascarado por trás de i(a) do narcisismo (...) exige que o melancólico, digamos, atravesse sua própria imagem e primeiro a ataque, para poder atingir, lá dentro, o objeto a que o transcende” (Lacan, 1962-63, p. 364). Nesse processo cambaleante a identificação com o objeto a e sua subsequente queda arrasta o melancólico a uma precipitação suicida. Se o luto entra no campo da atuação (acting out), a melancolia coloca o sujeito nas trilhas de uma passagem ao ato que encontra sua expressão no suicídio. E isto, na medida em que “a sombra do objeto recai sobre o eu” (famosa fórmula freudiana de “Luto e melancolia”), ou seja, o sujeito se identifica com o objeto a e cai na precipitação suicida.
Em suma, o que Lacan recupera e retrabalha do texto freudiano é a importância de empreender uma distinção precisa que coloca, por um lado, “o ciclo ideal da referência ao luto e ao desejo” (Lacan, 1962-63, p. 364) na dependência da “relação de a com i(a)”, e por outro, como na melancolia encontramos “a referência radical ao a, mais arraigada para o sujeito que qualquer outra relação, mas também intrinsicamente desconhecida, alienada na relação narcísica” (Lacan, 1962-63, p. 364).
Por Isaías Ferreira
Olá a todas e todos,
o Movimento Psicanalítico do ABC convida para a Jornada de Abertura dos trabalhos de 2019, no sábado dia 09 de março, com o tema "Filosofia e Psicanálise".
o Movimento Psicanalítico do ABC convida para a Jornada de Abertura dos trabalhos de 2019, no sábado dia 09 de março, com o tema "Filosofia e Psicanálise".
Na mesa da manhã buscaremos apresentar os fundamentos filosóficos que
embasam a teoria psicanalítica bem como a passagem de Lacan da psiquiatria para
a psicanálise e ainda uma introdução dos conceitos de significante e Outro.
Para os interessado no “Curso de introdução ao ensino da Lacan: da filosofia à
Psicanálise”, que inicia em 16 de março, esta será uma oportunidade para
conhecerem os docentes e se situarem sobre o desenrolar do curso.
Na mesa da tarde receberemos nosso convidado especial Fábio Franco, abordando
o tema: “O objeto e suas vicissitudes: Política e melancolia”.
As inscrições estão abertas e devem ser feitas pelo WhatsApp 9.4112.2152
O evento é gratuito e as vagas são limitadas
Haverá certificados aos que solicitarem